A criopreservação de óvulos deve ser custeada pelo plano de saúde?

O tema do artigo que se escreve se presta a analisar o direito da beneficiária do plano de saúde à criopreservação ovular.

A discussão jurídica é extremamente relevante, por dizer respeito ao direito ao planejamento familiar de milhares de gestantes.

O Centro Jurídico da Discussão.

É importante fixar, como premissa inicial, que a Lei de Planos de Saúde (Lei 9.656/98) expressamente exclui do seu rol de coberturas obrigatórias a inseminação artificial. Como espécie de mecanismo de reprodução assistida, a advocacia sempre lutou pela interpretação restritiva do dispositivo excludente da norma, com a defesa da obrigatoriedade de custeio de todos os demais procedimentos e tratamentos de reprodução assistida, inclusive a fertilização in vitro, por força da obrigatoriedade de oferta, pelos planos de saúde, do atendimento em casos de planejamento familiar.

Todavia, ao longo dos anos, o que se viu foi uma jurisprudência que alargou o conceito de inseminação artificial contido no inciso III do art. 10 da Lei 9.656/98. Como consequência, os tribunais começaram a perfilhar a linha de entendimento segundo a qual embora a inseminação artificial seja apenas um mecanismo de reprodução assistida, não seria razoável crer que a intenção do legislador foi apenas vedar a espécie, mas sim todo o gênero dos mecanismos de reprodução artificial. 

O Superior Tribunal de Justiça foi além em 2017, ao tratar a fertilização in vitro como espécie de inseminação artificial, ampliando ainda mais o alcance do dispositivo permissivo da exclusão:

CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. PLANO DE SAÚDE. ENDOMETRIOSE. PLANEJAMENTO FAMILIAR. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL. EXCLUSÃO DE COBERTURA. ABUSIVIDADE. NÃO CONFIGURADA. AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. RESOLUÇÃO NORMATIVA 338/2013. FUNDAMENTO NA LEI 9.656/98. 1. Ação ajuizada em 21/07/2014. Recurso especial interposto em 09/11/2015 e concluso ao gabinete em 02/09/2016. Julgamento: CPC/73. 2. O propósito recursal é definir se a inseminação artificial por meio da técnica de fertilização in vitro deve ser custeada por plano de saúde. 3. Ausentes os vícios do art. 535 do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração. 4. A Lei 9.656/98 (LPS) dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde e estabelece as exigências mínimas de oferta aos consumidores (art. 12), as exceções (art. 10) e as hipóteses obrigatórias de cobertura do atendimento (art. 35-C). 5. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com a autorização prevista no art. 10, § 4º, da LPS, é o órgão responsável por definir a amplitude das coberturas do plano-referência de assistência à saúde. 6. A Resolução Normativa 338/2013 da ANS, aplicável à hipótese concreta, define planejamento familiar como o “conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (art. 7º, I, RN 338/2013 ANS). 7. Aos consumidores estão assegurados, quanto à atenção em planejamento familiar, o acesso aos métodos e técnicas para a concepção e a contracepção, o acompanhamento de profissional habilitado (v.g. ginecologistas, obstetras, urologistas), a realização de exames clínicos e laboratoriais, os atendimentos de urgência e de emergência, inclusive a utilização de recursos comportamentais, medicamentosos ou cirúrgicos, reversíveis e irreversíveis em matéria reprodutiva. 8. A limitação da lei quanto à inseminação artificial (art. 10, III, LPS) apenas representa uma exceção à regra geral de atendimento obrigatório em casos que envolvem o planejamento familiar (art. 35-C, III, LPS). Não há, portanto, abusividade na cláusula contratual de exclusão de cobertura de inseminação artificial, o que tem respaldo na LPS e na RN 338/2013. 9. Recurso especial conhecido e provido. (STJ – REsp: 1590221 DF 2016/0067921-3, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 07/11/2017, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/11/2017)

Esta compreensão jurisprudencial, entretanto, foi largamente combatida em diversos tribunais do Brasil, sendo criados diversos precedentes permitindo o custeio da fertilização in vitro pelos planos de saúde. Isto porque o direito ao planejamento familiar é expressamente garantido no artigo 35-C da Lei de Planos de Saúde.

No Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, por exemplo, vigorou durante muito tempo um enunciado sumular  editado em 2016 que impunha a obrigatoriedade do custeio da fertilização in vitro pelos planos de saúde. Neste sentido, foi escrito um artigo neste sítio eletrônico.

Todavia, em dezembro de 2018, o referido entendimento sumular foi revogado, o que ampliou as dúvidas sobre a obrigatoriedade ou não da fertilização in vitro, que, a rigor, trata-se de mecanismo de reprodução assistida, tal qual a criopreservação.

Apesar da revogação da referida súmula, o próprio Tribunal de Justiça da Bahia, em julgamento realizado posteriormente à revogação sumular, condenou operadora de plano de saúde ao custeio de fertilização in vitro

Afinal, a fertilização in vitro deve ser custeada pelo plano?

Dessa forma, ainda hoje, quando o tema é a fertilização in vitro, há insegurança jurídica na postulação judicial, não sendo considerada uma ação segura, existindo margem de risco de insucesso judicial. Fora do Poder Judiciário, os planos de saúde não efetuam o custeio do tratamento de fertilização in vitro, por considerarem espécie de inseminação artificial.

A criopreservação ovular e sua obrigatoriedade.

No que atine à criopreservação ovular, recentemente o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu um entendimento impondo custeio do referido tratamento pelo plano de saúde, desde que conexo a um tratamento de quimioterapia.

Isto porque, nos casos de tratamento com quimioterapia, a criopreservação surge como um mecanismo de minoração de danos do tratamento quimioterápico, e não propriamente como um mecanismo de reprodução assistida.

Dessa forma, com o julgamento da Corte, o entendimento prevalecente passou a ser aquele segundo o qual a criopreservação deve ser custeada pelo plano de saúde, enquanto mecanismo de redução de danos do tratamento de uma doença principal. Dessa forma, aquela paciente que realiza tratamento quimioterápico tem direito ao custeio da criopreservação pelo plano de saúde, como extensão do próprio tratamento da quimioterapia, enquanto esta durar.

Dessa forma, é adequado raciocinar que esta linha de raciocínio deve se estender para alcançar as demais doenças cujos tratamentos conduzem à infertilidade, casos nos quais a reprodução assistida passa a ser compreendida como instrumento acessório do tratamento da doença, tendo por propósito minorar os danos causados à beneficiária do plano de saúde.

Caso inexista a doença cujo tratamento poderia gerar a infertilidade, adentra-se em uma zona jurídica de profunda incerteza, no qual a postulação judicial dependerá expressivamente da linha de entendimento do magistrado sorteado.

Confira-se, a propósito, o julgado do STJ:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CPC/2015. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO PARA CÂNCER DE MAMA RECIDIVO.
PROGNÓSTICO DE FALÊNCIA OVARIANA COMO SEQUELA DA QUIMIOTERAPIA.
PLEITO DE CRIOPRESERVAÇÃO DOS ÓVULOS. EXCLUSÃO DE COBERTURA.
RESOLUÇÃO NORMATIVA ANS 387/2016. NECESSIDADE DE MINIMIZAÇÃO DOS EFEITOS COLATERAIS DO TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. PRINCÍPIO MÉDICO “PRIMUM, NON NOCERE”. OBRIGAÇÃO DE COBERTURA DO PROCEDIMENTO ATÉ À ALTA DA QUIMIOTERAPIA NOS TERMOS DO VOTO DA MIN.a NANCY ANDRIGHI.
1. Controvérsia acerca da cobertura de criopreservação de óvulos de paciente oncológica jovem sujeita a quimioterapia, com prognóstico de falência ovariana, tornando-a infértil.
2. Nos termos do art. 10, inciso III, da Lei 9.656/1998, não se inclui entre os procedimentos de cobertura obrigatória a “inseminação artifical”, compreendida nesta a manipulação laboratorial de óvulos, dentre outras técnicas de reprodução assistida (cf. RN ANS 387/2016).
3. Descabimento, portanto, de condenação da operadora a custear criopreservação como procedimento inserido num contexto de mera reprodução assistida.
4. Caso concreto em que se revela a necessidade atenuação dos efeitos colaterais, previsíveis e evitáveis, da quimioterapia, dentre os quais a falência ovariana, em atenção ao princípio médico “primum, non nocere” e à norma que emana do art. 35-F da 9.656/1998, segundo a qual a cobertura dos planos de saúde abrange também a prevenção de doenças, no caso, a infertilidade.
5. Manutenção da condenação da operadora à cobertura de parte do procedimento pleiteado, como medida de prevenção para a possível infertilidade da paciente, cabendo à beneficiária arcar com os eventuais custos do procedimento a partir da alta do tratamento quimioterápico, nos termos do voto da Min.a NANCY ANDRIGHI.
6. Distinção entre o caso dos autos, em que a paciente é fértil e busca a criopreservação como forma de prevenir a infertilidade, daqueloutros em que a paciente já é infértil, e pleiteia a criopreservação como meio para a reprodução assistida, casos para os quais não há obrigatoriedade de cobertura.
7. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.
(REsp 1815796/RJ, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 09/06/2020)

Sendo assim, entende-se e conclui-se que a criopreservação apresenta custeio obrigatório pelo plano de saúde, quando relacionada a um tratamento capaz de induzir a infertilidade. Não havendo tal tratamento, todavia, a matéria dependerá do entendimento do magistrado, existindo maiores riscos na postulação judicial.

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